Ulrich Rosenzweig
Esta é a
história do meu pai que foi bruscamente interrompida .
Evelyn
Rosenzweig
O judeu romeno Ulrich Rosenzweig, de 85 anos, chegou ao Rio há 60 anos, no
pós-guerra, com uma mão na frente e outra atrás. Não tinha família, não tinha
ninguém. Nem sabia falar o português. Só ele, sua fé no Deus de Israel e uma
resistência à toda prova. Trazia no corpo a marca da Segunda Guerra com a qual
conviveu até o fim da vida - um estilhaço de granada numa das pernas, resultado
de uma das escaramuças vividas como combatente do Exército Vermelho, em cujas
fileiras havia ingressado para escapar de um campo de concentração nazista na
Ucrânia. Ou era o campo de concentração ou entrar para o Exército russo. Seu
Ully, como era conhecido pela família e pela vizinhança do Arpoador - onde
morava - era duro na queda, embora seu sobrenome em alemão signifique "galho de
rosa".
Ele venceu o nazismo, o comunismo, a Segunda Grande Guerra, o medo e a
solidão. Só foi derrotado pela violência do Rio de Janeiro. Morreu na tarde de
terça-feira passada com um tiro no peito disparado por um assaltante que acabara
de roubar R$ 9.800,00 do contínuo da empresa dele. O combatente Rosenzweig
tombou no saguão do prédio onde tinha escritório, na Rua Uruguaiana - coração do
Centro do Rio - onde costumava distribuir esmolas aos moradores de rua das
proximidades. Seu Ully tinha um coração de mãe. Logo que se estabilizou foi
buscar os pais na Ucrânia e uma irmã, Netty Maidantchik, de 66 anos, que à época
tinha apenas 12 anos e já era uma das prisoneiras do campo de concentração
nazista em Moguilof, na Ucrânia.
Quando seu Ully chegou ao Rio, em 1948, a cidade ainda não havia
passado por seu grande "boom" de crescimento, pós-êxodo rural. Ele veio em
companhia de alguns amigos judeus que estavam em busca de parentes, como Nathan
Kimelblat, que depois fundou a joalheria Nathan. Com a profissão de vendedor
ambulante ("clintelt", em ídiche, o dialeto judaico), seu Ully vendia jóias de
casa em casa, pelo Centro do Rio. Mais tarde trabalhou em tudo um pouco.
Participou até da obra do Edifício Avenida Central, um primor de modernidade na
época, na Rio Branco.
Na Rua da Alfândega, entre os comerciantes judeus, conheceu Miriam, a
mulher que seria mãe de seus quatro filhos, que lhe deram seis netos e esses
três bisnetos. Miriam sofre de Mal de Alzheimer, aos 75 anos, e não é mais capaz
de discernir o que ocorre ao seu redor. Conscientemente ainda não se deu conta
de que ficou viúva e de forma tão trágica.
Seu Ully tinha um forte senso de justiça. Certa
vez saiu em proteção de um turista que era saqueado por ladrões no Arpoador.
Conseguiu afugentar os bandidos e, como bom samaritano, socorreu a
vítima.
Seu Ully deu entrevista à Spilberg Foundation, do cineasta de "A
Lista de Schindler", que gravou depoimentos com judeus sobreviventes da guerra
mundo a fora. Mas sua história contada aqui foi relembrada por alguns de seus
filhos, como Mônica e Evelyn, que é presidente da Câmara Comunitária do Leblon.
Depois de participarem de orações na sinagoga onde seu Ully freqüentava em
Copacabana, Evelyn e outros parentes foram ontem à noite à manifestação de
protesto contra a morte de seu Ully, organizada pelo movimento Rio de Paz, na
Praia do Leblon. Ali foi colocada a faixa onde se lia que seu Ully
"sobreviveu ao holocausto, mas não à violência do Rio".
E minutos antes de receber o tiro de
misericórdia que encerrou sua jornada neste mundo, na terça-feira, seu Ully fez
uma profecia que esperamos que não se concretize no caso
dele:
"O Rio é uma cidade de impunidade", disse Ully à filha Selma,
comentando sobre a violência na cidade. O Rio tornou-se de fato uma cidade
marcada pela impunidade de todo tipo de criminoso. E pensar que quando seu Ully
escolheu o Brasil para viver, aos 25 anos, foi apenas por uma vaga idéia que se
fazia do país no imaginário de imigrantes que fugiam de guerras e perseguições
políticas.
"Existe um país chamado Brasil, que tem um clima
maravilhoso, emprego para todo mundo e sem guerra". Era o que diziam os amigos
de seu Ully. Então ele decidiu vir para cá. E viveu entre nós por apenas 60
anos. Poderia ter vivido bem mais se não fosse o clima de insegurança em que
vivemos nesses tempos de guerra não convencional declarada.
|
As filhas
Mônica e Evelyn conversam com o presidente do Rio de Paz, Antônio Carlos
Costa, diante da faixa em homenagem ao homem que chegou no Brasil fugindo
de uma guerra e acabou morrendo em
outra |
Arte de: Rivkah Cohen
Texto : Evelyn Rosenzweig
Fotos: Álbum de
família e Jorge Antonio Barros