A palavra hebraica tefilá é geralmente traduzida para outros idiomas por
reza, prece ou oração, mas não é uma tradução fiel, pois fazer uma prece
significa pedir, suplicar e termos semelhantes, para os quais existem palavras
hebraicas mais precisas. As preces cotidianas não são simples pedidos dirigidos
a D-us para prover as necessidades do dia-a-dia e nada mais. Tais pedidos também
são incluídos nas orações, mas a tefilá é muito mais do que isso.
Tefilá deriva do verbo palel (=julgar, pensar, crer, rogar), usado na
construção reflexiva lehitpalel (=rezar) significando também autojulgar-se.
Assim, reza é também é autojulgamento, auto-avaliação. Quando alguém se dirige a
D-us, tem que perscrutar seu coração e examinar-se.
Com base nos textos bíblicos, sabemos que os sacerdotes davam a benção
sacerdotal em santuários, que o rei Salomão rezou no Primeiro Templo e diversas
preces foram pronunciadas por indivíduos em outros cenários. Mas a de Ana é o
único caso na Bíblia em que a prece de uma pessoa comum é oferecida no cenário
de culto, no santuário no qual os sacrifícios eram oferecidos. Assim, foi um
histórico ponto de conexão para os rabis, que desejavam substituir os
sacrifícios pela "prece do coração". Em outras palavras, seu ato é digno de nota
como uma ação pessoal e espiritual que, no contexto, desafia implicitamente a
hierarquia da ordem social e religiosa.
Tefilot cotidianas
Na época do Templo, o culto consistia essencialmente dos sacrifícios,
acompanhados de cantos de salmos e ações de graça. Nas sinagogas, fora de
Jerusalém, os judeus reuniam-se para a leitura da Torá. Após a leitura, cada um
podia dirigir a D-us suas orações particulares. Mas destruído o Templo, a oração
substituiu os sacrifícios.
Enquanto o povo vivia em sua terra, não era necessário fixar textos para
as orações públicas e privadas. Mas, quando o hebraico deixou de ser falado no
cotidiano, os sábios de Yavne deram às preces uma forma definitiva que tem sido
conservada desde então. Quando um judeu, onde quer que se encontre, volta-se
para Jerusalém e ora, sente-se unido, pela mesma fé e esperança, expressas pelas
mesmas palavras, a todos seus irmãos dispersos.
Se bem que quase todas as tefilot possam ser recitadas sem miniyán (dez
pessoas necessárias para as orações públicas), a prece pública tem um valor
especial. Certas orações só podem ser ditas em público, entre elas o Kadish
(glorificação de D-us), onde se exprime a esperança que o reino divino seja
reconhecido em breve e que a paz e a vida sejam concedidas a todo Israel.
Durante o ano de luto pelos pais ou no aniversário de sua morte, os filhos
recitam o Kadish, em sinal de submissão à Justiça Divina e de respeito por
aqueles que lhes inculcaram os preceitos da vida judaica.
A oração principal, depois da leitura do Shemá e das bênçãos que se diz à
noite e pela manhã é o Shmone Essrê (=dezoito, pois originalmente consistia de
18 bênçãos) também chamada Amidá, que se recita de pé, voltado para o Oriente.
Ela é recitada desde os tempos do exílio da Babilônia, mas foi Rabán Gamliel
quem estabeleceu o texto atual, em que se pede a D-us que anule os desejos dos
inimigos de Israel, faça desaparecer o mal e reconstrua Jerusalém em breve. No
Shabat e dias de festa, em lugar de todas as bênçãos que compõem a Amidá,
recitam-se só 7.
Nos dias de semana, recitam-se três tefilot: uma pela manhã, chamada
tefilát há-sháhar (da aurora), antes das ocupações habituais; uma depois do
meio-dia, minhá (oferenda), que substitui o sacrifício da tarde; e arvit ao
anoitecer. No Shabat, dias de festa e início de cada mês, se junta uma quarta
tefilá após Shaharit, denominada mussáf (suplemento), por substituir o
sacrifício suplementar dos dias de festa. Em Iom Kipur, no fim do dia, recita-se
Tefilá Neilá (encerramento).
As orações públicas são cantadas ou lidas em voz alta pelo hazán (cantor
litúrgico) seguido pela congregação. Costuma-se recitar o Shmonê Essrê duas
vezes: a primeira, em voz baixa, pela assembléia, e a repetição, em voz alta,
pelo hazán. Na repetição, intercala-se a Kedushá (proclamação da santidade de
D-us), dita alternadamente pelos fiéis e pelo hazán. Os Kohanim recitam também
birkát Kohanim (benção sacerdotal), da mesma forma que os sacerdotes
recitavam-na no Templo (na diáspora é recitada somente nos dias de festa). Os
pais pronunciam-na na sexta-feira à noite, erev Shabat, e em grandes ocasiões,
impondo as mãos sobre seus filhos.
O Exagero na Prece
Antonino, que sucedeu a Adriano no governo de Roma, era clemente e justo.
No seu reinado os povos foram beneficiados por um período de paz. Ouvia com
respeito os sábios e os conselhos dos mais velhos. Freqüentava a sua corte o
rabi Iehudá ha-Nassi. Um dia o imperador pediu que o rabi o esclarecesse: Deve
um homem, dentro dos princípios de sua fé, rezar a todo instante e erguer suas
preces a cada momento?
Esse exagero não é permitido, esclareceu o rabi, para impedir que o homem
se habitue a invocar em vão o nome de D-us.
Antonino não compreendeu e retorquiu: A razão que alegas, rabi, não tem
cabimento.
Ha-Nassi não insistiu, mas, no dia seguinte, apresentou-se muito cedo na
sala do trono e ao entrar saudou respeitoso o imperador bem alto: Salve Tito
Aurélio Fúlvio Antonino, senhor de Roma, dominador do mundo! Ave César Augusto!
Sentiu-se Antonino lisonjeado. O rabi, meia hora depois, ergueu-se solene
e repetiu: Salve Tito Aurélio Fúlvio Antonino, senhor de Roma, dominador do
mundo! Ave César Augusto!
E passou a repetir, de meia em meia hora. Na quarta ou quinta vez o
imperador irritou-se e advertiu indignado: Como te atreves, rabi, a zombar assim
da realeza? Que pretendes com essa saudação insistente e despropositada?
O sábio Iehudá ha-Nassi falou: Meditai, César, sobre o que acaba de
suceder. Sois, um rei mortal e, no entanto, não podeis suportar que vos saúdem
de meia em meia hora. E, antes de findar o dia, fizeste calar o importuno. Mais
censurável é a impertinência daquele que saudar todo instante o Rei dos Reis!
Referências Bibliográficas:
Da tese de Doutorado da autora deste artigo: "De Rachel a Rachel: Mulher,
Amor e Morte", SP, USP, 2001.
Do livro, também da autora do artigo, "`A Luz da Menorá: Introdução à
Cultura Judaica", RJ, Stampa, 1999.
Adaptado de "Lendas do Povo de D-us", Malba Tahan, RJ, Record, 1984,
p.42-43.
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Jane Bichmacher de Glasman possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) , especialização em Letras LÍNGUA E LITERATURA HEBRAICA pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984) , mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983) e doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (1999) . Atualmente é PROFESSOR ADJUNTO da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras. Atuando principalmente nos seguintes temas: literatura, cultura, poesia, psicologia, filologia.
Arte final : Rivkah Cohen