EDELWEISS
Silvana Duboc
E é
no início do ano de 1939 que começa a nossa história.
Vivíamos na Áustria, um país coberto por flores, eu, meus pais e meu
irmão. Éramos a imagem da família feliz e unida e entre nós reinava a certeza
que nada na vida conseguiria nos separar, mas não foi bem
assim.
Meu
pai era um cirurgião de renome, minha mãe professora, daquelas dedicadas, que
lecionava por puro amor aos seus alunos.
Eu
tinha então dez anos e meu irmão quinze. Nossos dias e nossas noites eram muito
alegres. Meus pais tinham o hábito de nos levarem até a varanda de nossa
casa após o jantar para vermos as estrelas e enquanto fazíamos isso, cada um ia
contando as coisas boas que haviam acontecido no seu dia. Não que não pudéssemos
contar as ruins, mas é que naquela época das nossas vidas só aconteciam coisas
boas.
Não
me recordo de algum dia ter visto um deles triste.
Depois que contávamos tudo e que admirávamos bastante as
estrelas, cantávamos ao som do violão do meu irmão. A primeira música sempre era
Edelweiss, linda, sonora, trazia paz aos nossos corações.
Ah!
como era bom cantar Edelweiss junto da minha família e debaixo das estrelas, eu
tinha a sensação que poderia fazer aquilo a vida toda sem jamais
enjoar.
Mas,
enfim, o tempo foi passando e veio a guerra e só se ouvia falar em Hitler e
eu não entendia bem que homem era aquele, nem o que ele representava e
então eu continuava todas as noites olhando para as estrelas junto das
pessoas que eu mais amava.
Um
dia, um terrível dia de dezembro que jamais esquecerei, tivemos que partir. Me
lembro que meu pai veio até nós e nos disse delicadamente:
"Vamos ter que passar algum tempo sem ver as estrelas no
céu"
Fomos covardemente arrancados de nossa casa por soldados, fomos
levados a um local que viria a ser a nossa nova casa, chamava-se campo de
concentração.
Lá,
não fomos felizes e lá eu pude ver pela primeira vez o semblante da minha
família triste, nem pareciam aquelas pessoas adoráveis que conviviam comigo
naquela varanda.
Todas as noites eu dizia à minha mãe que queria ver as estrelas,
cantar sob elas e ela me respondia com lágrimas nos olhos que durante
um pequeno período a única estrela que eu poderia ver era a que eu trazia
pendura no pescoço, de seis pontas, tão linda quanto as que brilhavam no
céu.
Acontece que minha mãe se enganou, não foi um período tão curto assim que
ficamos por lá e com o tempo foram me levando muito mais coisas além das
estrelas do céu, foram me levando tudo.
Levaram-me a estrela do pescoço também, levaram meus pais para um banho
do qual eles nunca mais voltaram, levaram meu irmão dentro de um trem que eu
nunca soube para onde foi, levaram o meu sorriso, a minha alegria de viver,
levaram a minha infância, só não levaram a minha voz e por isso, todas as noites
ao deitar, eu fechava os olhos e cantava baixinho Edelweiss e aí eu podia ver as
estrelas, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão, a varanda da nossa
casa....
A
minha imaginação eles também não conseguiram levar...
Hoje
eu tenho a absoluta certeza que realmente eu nunca teria me cansado de cantar na
varanda com a minha família, que eu, de forma alguma, abandonaria o meu país,
que minha mãe foi a pessoa mais doce que eu conheci, que meu pai foi a imagem da
dignidade, que meu irmão foi o meu grande companheiro e que tocava violão como
ninguém.
Hoje
eu sei a verdadeira razão das lágrimas de meus pais ao se despedirem de mim
apenas porque iriam tomar um banho e o motivo do abraço tão apertado
que meu irmão me deu naquela tarde em que foi colocado dentro daquele
trem.
Hoje
eu sei de tantas coisas que eu não queria saber, sei que os homens podem agir
como animais ferozes, sei que raças, credos, religiões, são apenas subterfúgios
que o homem usa para deixar o leão que existe dentro deles
despertar.
Hoje
eu sei que o tempo é poderoso, mas não tão poderoso a ponto de apagar qualquer
coisa que tenha sido muito boa ou muito ruim.
Hoje
eu sei finalmente, que a saudade é o campo de concentração do
coração.
Hoje
eu sei que o maior tesouro que existe na vida é a
paz.
Shalom!
Dedicado a todos
os judeus que tiveram as suas vidas exterminadas durante Holocausto e às
suas famílias que sofrem por essas perdas até hoje.
À Duboc, com minha eterna
gratidão,
Rivkah