Os 'Marranos' de Campina Grande

 

Uma experiência inesquecível

 

Anita Waingort Novinsky

 

Desde o Amazonas até o rio Grande do Sul existem brasileiros  que se consideram descendentes de cristão-novos portugueses, ou porque seu nome é Carvalho, Pereira ou Oliveira, ou porque seu pai não lhes permitia  ir à Igreja, ou porque nunca haviam sido batizados. É interessante que encontrei no Nordeste famílias brasileiras que nunca souberam que seus hábitos e costumes cotidianos eram judaicos.
Participei recentemente, como conferencista convidada, em um evento, organizado por um grupo que se denomina 'Amigos da Torá', inserido num evento maior, chamado Nova Consciência, que reúne todos os anos, em Campina Grande, centenas de indivíduos pertencentes a religiões, seitas e raças diferentes,  desde a umbanda, tarot, espíritas, católicos, evangélicos.
 Fui acolhida calorosamente por Davi Meneses e por todo grupo  dos 'bnei-Hanussim', constituído de uma centena de pessoas. Há quatro anos esse grupo se reúne em Campina Grande. Tive a oportunidade de encontrar entre os 'Amigos da Tora' uma mulher de excepcional talento, uma judia fervorosa, Lourdes Ramalho, historiadora, escritora, teatróloga e famosa também pela sua cozinha de quitutes marranos do sertão. Sua casa, carregada de retratos,  imagens, símbolos judaicos, uma típica casa nordestina, e seu fervor como  judia, me emocionaram até as lágrimas.
 Na sala coberta de azulejos foi servido o almoço, com pratos  que eu nunca havia saboreado, mas que todos diziam, serem pratos típicos  judaicos, ainda dos tempos coloniais. Reunidos em torno de uma longa mesa, a maioria cristãos novos, a conversa girava sempre em torno da história judaica.
 Arroz de leite, queijo na manteiga, carne seca, paçoca de carne e ainda a goiabada mole com requeijão quente, tudo feito pelas mãos de Lourdes Ramalho.
Na casa de Lourdes conheci, surpresa, diversos marranos de Campina Grande.
Gente culta, letrada, escritores, historiadores, poetas, políticos. As histórias de cada um era um romance. E, como escreveu minha filha Ilana, que me acompanhou, 'entre mundos europeu e americano, português e brasileiro, católico e judeu, tornam-se todos poetas, sensíveis ao humano e à experiência melancólica e saudosa de algo que parece longínquo e perdido na memória'. Também o famoso filósofo francês Jacques Derrida escreveu, referindo-se aos marranos, 'é um tempo que teima em não passar'.
Ouví estórias as mais incríveis, que mostram uma ânsia de retornar e uma vontade de conhecer mais sobre suas origens remotas e desvendar mais sobre seu passado. 
Davi Meneses, o 'rosh', 'cabeça' e fundador do grupo 'Amigos da Torá', contou sobre sua paixão em retornar ao seio do povo judeu, acrescentando  que recebe de braços abertos todos os que vêm a ele e que querem 'novamente' ser judeus.
 Sábado de manhã, fui assistir à celebração do 'shabat'. Emuma pequena sala foi improvisada uma sinagoga. Um armário guardava uma pequenina Torá, muito simples, sem adornos. Um jovem cantava, acompanhado de uma guitarra e um violão. Com uma voz potente e melodiosa, encheu o salão de emoção e  entusiasmo. Foi uma verdadeira doação. A sinagoga estava lotada de brasileiros, de cabeça chata, pele queimada do sol, que acompanhavam o canto. No final, se levantaram e em coro, ouvi todos cantarem em hebraico o hino nacional  de Israel, 'Hatikvah'. Pensei entrar no mistério que envolve toda nossa história.
Quando me pediram para falar, pude apenas proferir esta frase: 'Vocês são o testemunho vivo da imortalidade de Israel'. 
Um garoto, filho de Davi Meneses, retirou do armário a pequena e pobrezinha Torá e leu as escrituras em hebraico, cantando e cumprindo o ritual do shabat. Todos acompanhavam comovidos e compenetrados. Foi um shabat  tipicamente brasileiro, mas marrano, naquela sala improvisada, com uma mezuzá na porta, que cada adulto e criança beijavam ao entrar, foi um shabat em pleno sertão da Paraíba, onde centenas de pessoas ansiosas buscavam saber quem eram, encontrando nessa busca um novo sentido para a vida. Alguns do grupo já haviam sido circuncidados, cobriam a cabeça com o solidéu bordado ou de cor preta. Todos estudam, rezam e comemoram as festas judaicas.
Davi Meneses morava na casa, onde hoje funciona a sinagoga, mas resolveu transformá-la em uma escola, onde crianças lêem as Escrituras e estudam o idioma hebraico, com um mestre, também 'retornado', que veio de Alagoas. No terreno ao lado da casa, estão construindo a futura sinagoga.
Uma mulher me disse que ela faz uma geléia caseira, e cada três potes que vende, entrega o dinheiro para a compra de cimento para a nova sinagoga.
Durante o evento, em diversos dias, vi a sala repleta de nordestinos cristãos-novos, atentos às conferências, sedentos de conhecer sua história  peregrina, as violências, o medo, e penetrar no segredo de seu passado.
Perguntas e mais perguntas choviam sobre mim e continuam a me chegar quase diariamente.
Nem sempre posso responder, nem sempre sei o que responder,mas uma coisa é certa: fiz duas descobertas na minha trajetória intelectual, e nas duas descobri um 'outro' Brasil, subterrâneo e velado. Na Primeira, nas minhas pesquisas e nos meus estudos, registrei os nomes de descendentes de judeus que ajudaram a construir o Brasil. Sabemos hoje que cristãos-novos foram os primeiros escritores, poetas, médicos, comerciantes, agricultores, políticos e artesãos na sociedade colonial. Na Segunda, presenciando a revivencência, após cinco séculos de vida clandestina, de uma chama ardente que o tempo não consumiu. Encontrei um 'outro' Brasil que palpita hoje nas franjas da sociedade brasileira, cuja história ainda tem de ser desvendado por aqueles que a vivem, e escrita pelos antropólogos e historiadores que a ouvirem.
Esses brasileiros que emergem hoje no nordeste, e principalmente em Campina Grande passam para seus filhos, netos e bisnetos, de geração para geração, uma curiosa história. Fiquei surpresa em ver a ansiedade com que cada um queria contar-me essa história. Lourdes Ramalho, Severino Barbosa da Silva Filho, Zilma Ferreira Pinto, herdeiros dos heróicos marranos dos tempos coloniais, registraram suas memórias em belos livros, que foram publicados no Nordeste, em reduzidas edições, das quais só recentemente tomei conhecimento.
Campina Grande é uma cidade de aproximadamente 400 mil pessoas e tem sete universidades. Impressionante ouvir aqueles jovens recitarem seus versos, e depois m'os oferecerem por escrito. O grupo 'Amigos da Tora' constitui uma verdadeira 'comunidade de destino', sabem que sempre foram discriminados, e carregam um judaísmo recentemente descoberto, mas vivo, e cheio de sentido.
Obedecem aos rituais e aos preceitos que ainda lembram, com um forte sentimento de 'pertencer'. O que importa mesmo é saber 'quem são', de 'onde vieram', pois sua verdadeira origem e nome se perderam nas brumas do tempo. O que  lhes ficou foi a crença num único Deus, criador do Universo, uma única Lei, alguns costumes e uma história comum.
Fisicamente, impressionam. Alguns devem descender de holandeses, são loiros de olhos azuis, e vivem no Cariri. Um rapaz se achegou a mim e me disse: 'sou judeu'. E começou a recitar versos de grande beleza e sensibilidade.
Vive no longínquo sertão de Boa Vista Santa Rosa, uma vila que visitei um dia, que tem poucas ruas e uma única igreja, e onde, uma mulher me olhou com horror quando lhe perguntei se comia carne de porco. 'Meu pai mataria a gente se a gente comia essa carne!'.
O grupo que conheci em Campina Grande é constituído de brasileiros natos há muitas gerações e que eu considero judeus. Alguns me contaram que passaram primeiro pelo evangelismo, outros pelo messianismo, confusos sempre em busca da sua religião antiga, que pouco conheciam. Hoje, se encontraram no judaísmo e têm um líder que lhes ensina a Torá, a língua hebraica e também a história que os trouxe, há cinco séculos, para o Brasil.
 Polêmicas e mais polêmicas têm surgido em torno desses brasileiros  cristãos-novos que hoje se chamam de judeus. Críticas partem de vários setores do judaísmo, protestos de rabinos, dúvidas dos próprios judeus, que negam a esses brasileiros a liberdade de escolherem o que querem ser. 
Milhares de vidas judaicas se perderam através dos tempos em massacres e assimilação. Somos poucos. Laicos, religiosos ou ateus, mas judeus. No entanto, é preciso ainda convencer a muita gente, que ser  judeu não é apenas ser religioso. Judaísmo é mais do que uma religião, é toda uma civilização e principalmente, um estado de alma. 
E eu quero deixar uma mensagem, apenas em meu nome,que não vai agradar a muitos: Venham a nós, que pertencemos ao povo judeu, todos aqueles que quiserem ser judeus, laicos, religiosos ou 'Amigos da Torà', mas que querem amar Israel e identificar-se com sua luta. Venham a nós todos aqueles que quiserem trabalhar conosco por um Israel livre e uma pátria segura para os judeus.
 
Anita Waingort Novinsky (
anitano@terra.com.br)


Licenciada em Filosofia e livre-docente em história pela Universidade de São Paulo. Especializou-se na França em História das Mentalidades e concentrou seus estudos sobre a Inquisição e Cristãos-Novos no Brasil. Foi professora visitante na École des Hautes Études em Sciences Sociales – Paris e nas Universidades norte-americans Brown, Rutgers-New Brunswich, Austin, Texas. Atualmente dirige uma equipe de pesquisadores na Universidade de São Paulo que pesquisa a Inquisição no Brasil. É Presidente do LEI - Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo e do Conselho Administrativo da Associação Museu da Tolerância de São Paulo. É coordenadora principal do Projeto Intolerância/Tolerância – Democracia e Cidadania, do Programa Institutos do Milênio – CNPq, onde também coordena o projeto Limites da Tolerância e Formas de Resistência – A Inquisição e a contra cultura no Mundo Ibérico (séculos XVI-XIX) e desenvolve a pesquisa Uma nova leitura sobre o pensamento do Padre Antonio Vieira: os judeus e a redenção do Mundo. Autora de oito obras sobre o tema da Inquisição. (https://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br/node/68)